Vielimir Khliébnikov no Brasil e em Astrakhan
Por Valerii Bossenko
O ocorrido não se parecia com as normas acadêmicas. Lembrava mais um salto inesperado num eletrocardiograma.
Na Villa Manin, na Itália, residência do último doge veneziano, tinha lugar, em 1995, a conferência internacional sobre a obra de Pasolini, um dos últimos titãs da arte italiana do séculoXX. O silêncio acadêmico da sala de conferências era interrompido apenas pela fala estrangeira dos oradores. Mas de repente, contrariando as regras vigentes sobre as línguas oficiais do encontro, da cátedra se ouve: -Do svidánia, drug moi, do svidánia! (Adeus,amigo meu, adeus!). Bom, o sr.deve se lembrar, professor Bossenko,da poesia de Iessiênin…
Foi uma afronta total. Toda essa frase foi dita com a mais purapronúncia russa. Além de mim e do conferencista, ninguém na sala entendia russo. Em pânico eu me enfiei na poltrona, quase a ponto de renegar minha língua materna antes do primeiro cantodo galo.
Tal malabarismo vinha do brasileiro Marco Lucchesi.
Todas as manhãs, quando nos encontrávamos no salão de conferências,Marco me cumprimentava alegremente. Seguia-se da parte dele uma série de perguntas, que eu não tinha tempo de responder.Tudo lhe interessava – o trabalhodo seu interlocutor, a Rússia,onde ele nunca esteve, a poesia russa, que conhecia bastante, as nossas confusões políticas, e muitase muitas outras coisas. Não consegui saber, afinal, em quantas línguas pode se expressar omeu interlocutor de 32 anos.
Como brasileiro Marco Lucchesi não poderia deixar de saber (o que logo se confirmaria) sua própria língua – o português. Como habitante da América Latina, ele não poderia ignorar o espanhol. Com um dos mais importantes editores da Alemanha ele se entendia em alemão. Na conversa com a esposado editor ele passava para o francês. Com os participantes do simpósio ele se comunicava sem dificuldades em inglês. Durante sua comunicação, artística e elegantemente ele não leu algo escrito em italiano, ele simplesmente conversa à vontade sobre Pasolini e ainda se permitiu a brincadeira de introduzir aquela passagem em russo de Iessênin.
Pouco depois aconteceu algo inesperado. De sua pasta, Marco Lucchesi tirou um livro, Poemas de Khliébnikov, editado no Rio, no qual escreveu uma dedicatória.Um livro de poemas do poeta russomais difícil do século XX, mais do que nenhum outro, um gênio da poesia praticamente intraduzível! Livro este feito com amor, com uma reprodução de Kasimir Malievitch na capa, iconografia variada no corpo do texto e o texto nas duas línguas russo e português. Por desconhecer esta última eu não ousaria julgar a qualidade das traduções, mas posso dar meu testemunho acerca do cuidado e minuciosidade acerca das impressõesdos versos em russo que Marco traduziu. O campo de força de hliébnikov e a energia do poeta se casaram indiscutivelmente bem com os esforços do tradutor e organizador do livro.
Não era à toa que eu estava mudo de espanto.
Em resposta ao meu pasmo, o causador da emoção tinha o direito de contar em alguma “mémoire” khliebnikoviana da minha parte e, provavelmente esperava por isso, seguindo os marcos da minha memória, por assim dizer, pois afinal de contas sou conterrâneo do poeta. Entretanto, a pausa que se seguiu foi prolongada, quase ao estilo do Teatro de Arte de Moscou. E sabe Deus que isto não foi intencional, e sim, devido à minha confusão. Aquela pausa não foi preenchida nem mesmo com os cumprimentos ao doador e agradecimentos pelo presente.
Que poderia eu dizer ao brasileiro Marco na Itália a respeitode Khliébnikov em Astrakhan?
Será que eu deveria dizer que o nome de Khliébnikov numa placa substituiu a Travessa Kakhóvski, que na velha Astrakhan só era conhecida pela casa de banhos de Stoliaróv? Ou seria mais conveniente falar do fato de quenas onze séries da escola soviéticao nome de Khliébnikov não foi mencionado em nenhum dos manuais, nem mesmo em letras miúdas. Era mais fácil a gente ouvir falar, ou mesmo ler de Camõesou Eça de Queirós do que do nosso Presidente do Globo Terrestre, com o qual há quase um século todo, o mundo instruído tem uma relação de merecidaadmiração.
Tendo nascido e passado meus primeiros doze anos na Rua Sverdlov, eu me lembro vivamente do centro de recrutamento militar defronte à entrada principal do nosso prédio, sobre o qual a cada aniversário da Revolução Soviética era colocada uma faixa vermelha flamejante com os números romanos XXX.
Mas o que o aluno da escola naquela época não percebia era que atrás do posto de recrutamento, se caminhasse mais algumas casas e atravessasse a ruela que levava até a casa de penhores, batizada com o nome do revolucionárioque estivesse na ordem do dia enfileirada com outras casas havia uma em especial – a casa de Khliébnikov.
Tradução do russo de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares