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“Os maus contaminam os bons”

21 de setembro de 2018 - Por Matheus Sousa
“Os maus contaminam os bons”

 

Da Eritreia para a Líbia, a Itália e o Brasil. Marina Colasanti é uma das mais premiadas escritoras brasileiras, detentoras de diversos prêmios nacionais e internacionais. Um dos nomes femininos mais importantes da história da literatura, tem mais de 50 títulos publicados no Brasil e no exterior, entre os quais livros de poesia, contos, crônicas, livros para crianças e jovens e ensaios sobre os temas literatura, o feminino, a arte, os problemas sociais e o amor. “Uma escritora brasileira, mas uma pessoa italiana”. Assim se define Marina Colasanti, que também leva em sua trajetória a vivência como artista plástica, jornalista e publicitária.

ComunitàItaliana — Nos conte um pouco de sua origem.

Marina Colasanti — Temos a tarde inteira? (risos). Eu nasci em Asmara, capital da Eritreia. Quando eu tinha um pouco mais de um ano fomos morar em Trípoli, na Líbia. E, em 1940, tomamos um hidroavião e fomos para a Itália, que tinha entrado em conflito. Vim parar no Brasil em 1948, dois anos depois do fim da guerra, pois meu pai já tinha família no Brasil. Ele é sobrinho de Gabriela Besanzoni, que se casou com Henrique Lage.

CI — Quais são seus lugares favoritos na Itália?

MC — É claro que minha cidade é Roma porque foi onde eu fiquei mais. A família do meu pai era de Roma. Mas eu gosto e tenho uma lembrança ligada a dois lugares: a Costa Adriática,
pois passava as férias lá em Porto San Giorgio, e Como, da qual tenho uma lembrança muito intensa do último ano de guerra. Agora, a Toscana é insuperável, muito linda.

CI — O que você absorveu da vivência e da cultura italiana na vida e na carreira?

MC — Uma necessidade constante de harmonia, que é uma coisa muito renascentista. Na Itália eu paro numa esquina e começo a rodar a cabeça devagar para ver se alguma coisa grita, se destoa, se algo sai do conjunto. E não sai, é sempre uma coisa interligada na outra. Muito harmonioso. Uma relação com a arte muito intensa. Ah, e o paladar… (risos). Eu tenho a certeza de que sou uma escritora brasileira porque eu escrevo em português, represento o Brasil em congressos, maseu sou uma pessoa italiana.

CI — Quais seriam as suas maiores influências italianas?

MC — A língua, claro. Eu penso em italiano como penso em português. A leitura, eu comecei a ler muito cedo, li muito nos dois últimos anos da guerra, leituras em italiano. Emilio Salgari marcou a minha vida. O fato de ler em italiano foi muito importante. A questão da arte também porque eu sou de uma família de artistas. Meu avô era historiador da arte e diretor das Belas Artes na Itália e tal. Isso me deu uma intimidade com arte, com museus e com arquitetura. A minha arquitetura interna tem colunas, capitéis e arcos. É outra vivência, foram anos muito especiais por serem anos de guerra. Então era uma situação diferente, de risco e parcimônia. Tudo era reaproveitado, tudo era reciclado, então isso fica com a gente.

CI — No que se refere à produção literária, o que você poderia destacar de diferenças entre Brasil e Itália?

MC — Eu acho que a maior diferença é a história. A Itália tem um conceito de história muito presente, que vai à Roma Imperial, a uma grandeza histórica. Muito diferente do conceito de história do Brasil, porque este é o século XIX, muito recente. Na Europa, é antes de Cristo. O peso da história, para o bem e para o mal, é sempre presente. E também a diferença está entre um país da natureza, como o Brasil, e o país da cultura, a Itália. No Brasil, a cultura mais intensa é a de raízes populares. Há pouca gente em concertos e orquestras que não conseguem sobreviver. O interesse do país e o investimento em cultura são muito reduzidos. O conceito de conservação do patrimônio é muito recente, delapidou-se o patrimônio arquitetônico brasileiro grandemente antes que o conceito se firmasse. Então essa é uma diferença muito grande, que seguramente se transfere para a literatura.

CI — Como você vê a produção literária nos tempos atuais com a interferência das novas mídias?

MC — Tem um ponto de vantagem, que é a possibilidade de contato entre jovens autores. A possibilidade para, sobretudo, autores de textos curtos de fazerem circular seus textos antes
mesmo de terem livro editado. Não existe mais a solidão do poeta porque ele entra na internet e dá o seu trabalho a conhecer. Isto é muito bom. E ele também pode conhecer o que está se
fazendo no mundo, pois antes um poeta de província não tinha biblioteca e livraria, não sabia o que estava se cozinhando em termos da profissão. Agora ele sabe. Há uma perda na área crítica porque se a gente vir as cartas trocadas entre Clarice Lispector e Fernando Sabino, quando ela estava na Suíça, a ansiedade dela pelo que diria a crítica do livro dela… A crítica dava um norte ao autor. Nós tivemos grandíssimos críticos, pessoas muito conhecedoras dos detalhes da profissão, armadas de todas as ferramentas teóricas. Agora esse tipo de crítica desapareceu, está muito encarcerada dentro das universidades, do ambiente acadêmico. Surgem blogs e os blogueiros. Ora, que instrumentos teóricos têm esses blogueiros? O que eles estudaram? Como podem falar de um jovem que está aparecendo e que, na maioria das vezes, tem mais talento do que ele? Há um falseamento através dessas opiniões que são emitidas. Como esses falsos médicos que estão fazendo falsas bundas, peitos e narizes. Eles, que não têm os conhecimentos e o aval da comunidade, palpitam no corpo alheio. E esses jovens blogueiros frequentemente na obra alheia.

CI — Então você acredita que a internet mais ajudou ou prejudicou a literatura?

MC — Isso nós vamos ver mais adiante. As redes sociais são o fenômeno do hoje, absolutamente do hoje. Impuseram o quantitativismo, ou seja, o valor da quantidade acima do valor da qualidade. “Fulano de tal tem não sei quantos milhões de seguidores”. O que isso significa?! A literatura não é um fenômeno isolado, ela é o reflexo da vida, um elemento cultural. Você pode analisar livros isoladamente, mas a literatura você tem que analisar dentro do conjunto da cultura e da vida. Nós não sabemos ainda aonde isso vai nos levar, é muito novo. O que vai acontecer com essa geração de criancinhas que hoje estão com um ano de idade já diante do tablet? Como saber? Veremos quando eles estiverem com 20 ou 40 anos, mas agora é impossível.

CI — Como você vê também a relação das crianças com a literatura hoje em dia?

MC — Livros para criança são uma coisa, literatura infantil é outra. Esta é que, como literatura adulta, tem que ter um padrão de qualidade, de conteúdo e tem que ser arte. A gente sabe que até os quatro anos de idade é muito prejudicial botar as crianças na frente de um tablete porque até essa idade é o momento de maior input, de maior aquisição de conhecimento. A diferença está no fato de que a criança sem tablet está olhando ao redor, capta, aprende, compara, aprende a ler o rosto dos outros. Saber ler o rosto do outro é uma maneira de se garantir na vida. Quando ela só está olhando para o tablet, ela só recebe aquilo. Em geral, ela está olhando desenhos animados. E nós sabemos que os desenhos animados são pobres em imagem, pois, para que resultem baratos, não se alteram os rostos dos personagens. A mesma carinha que abre a boca e pisca o olho, mas o desenho é o mesmo porque isso barateia a produção de um desenho animado de segunda, terceira, quinta qualidade. A criança só vê aquilo que querem lhe mostrar, e isso pode ser muito perigoso.

CI — Como você definiria a importância da leitura para a formação dos jovens e para uma melhora na educação do país?

MC — A literatura é estruturante. Ela ajuda o indivíduo a responder às suas interrogações interiores ou a torná-las mais claras porque muitas vezes você não sabe o que está se perguntando. Você tem uma inquietação e não sabe formular a pergunta. A literatura inventou os links muito antes do computador porque o tempo todo está fazendo links. Uma pessoa diz uma frase, aí no capítulo seguinte outra pessoa diz aquela frase… É uma janela mais ampla sobre a vida que, além do mais, te mostra outros universos, outras maneiras de viver. Sem você precisar sair da sua casa. É a melhor escola que tem.




CI — Como você enxerga esse espaço virtual imediato da internet com a questão da fake news?

MC — O problema da fake news é o compartilhamento. Você recebe e multiplica. Você sendo da área de informação não pode multiplicar uma notícia sem verificar. Isso é elementar. A gente está vendo que a comunidade internacional está buscando meios de proteção porque isso põe tudo em risco: os governos, as fronteiras, a supremacia de um país. Quando a diplomacia de um país rouba os dados de um cidadão de outro país para entrar e modificar as eleições daquele outro país isso anula as fronteiras. Estamos pulverizando as fronteiras e o mundo diplomático. Então isso está sendo muito ameaçador para a comunidade internacional, que criou o monstro, agora precisa cortar as unhas do bicho porque senão ele vai destroçar tudo. O jornalista tem que ter seriedade na pesquisa. Você não pode fazer pesquisa hoje em dia só com Wikipédia e com informação light. Tem que ir mais fundo na fonte.

CI — Para você, hoje, a mulher tem mais espaço no campo da literatura?

MC — Sem dúvidas. No tempo da Clarice eram poucas mulheres, a gente conta nos dedos. Era uma coisa estranha uma mulher escritora. Hoje, ao fazer as análises de mercado, ficou evidente que as mulheres compram mais livros do que os homens e que as mulheres dão mais livros de presente do que os homens. Também ficou evidente que os homens relutam em comprar um livro escrito por mulher e em comprar um livro que tenha a palavra “mulher” no título, a não ser que seja “como satisfazer a sua mulher na horizontal”, ou “mulheres”, de preferência, o plural funciona mais (risos). Então os editores começaram a se interessar mais por autoras mulheres, sabendo que outras mulheres comprariam. Fora o trabalho que
minha geração e outras fizemos em prol do feminismo, para levar a mulher para frente na escala social, nas possibilidades, pra abrir campos pra mulher. Isso também veio a favorecer.
As mulheres estudam mais do que os homens, ou seja, elas fazem mais pós-graduação, segundo dado estatístico. O pensamento teórico feminino fica registrado nas teses. Então em todos os campos, não só na literatura, as mulheres avançam.

CI — De que forma você analisa a educação brasileira?

MC — Profissionalmente eu tenho contato com experiências bem sucedidas porque eu faço palestras em centros de preparação de professores, para agentes de leitura. Eu encontro muitos projetos de leituras bem sucedidos, sejam escolares, sejam individuais. As escolas que se empenham em leitura, que fazem da leitura o seu ponto de suporte principal, conseguem excelentes
resultados mesmo sem carteiras, aparelhos de ar refrigerado, sem computadores na escola. Muito pela determinação da direção da escola e do empenho dos professores. Essas experiências são ótimas. Agora, a atuação governamental no Brasil é uma tragédia, porque a educação tem que ter continuidade. Cada governo traz mudanças, o orçamento pra educação é muito pequeno. Eu não sei como não se fuzilam — e olha que sou contra a pena de morte — os que roubam na merenda escolar, os que roubam na Literatura Entrevista educação. Agora, com a greve dos caminhoneiros, de onde se tirou a maior fatia? Da educação! Era o único lugar de onde não se podia tirar. Não se pode tirar dinheiro da educação e nem da saúde, e a educação primeiro porque se você der educação você economiza na saúde, você vai ter cidadãos que sabem se cuidar, que são mais saudáveis. A gente olha em volta e quer chorar. Por que não entendemos que a maneira primeira de levar o país para frente é através da educação? A educação no Brasil já foi ótima. Affonso Romano de Sant’anna, meu marido, estudou em escola pública. As escolas públicas de Minas Gerais eram maravilhosas. Já foi melhor. Em vez de melhorar, piora? Hoje para você conseguir um emprego vai disputar com excelência, tem que estar mais preparado porque os postos de emprego diminuem e a multidão que precisa de emprego aumenta. Então quais são escolhidos? Os melhores. E como estamos preparando as crianças e os jovens para serem os melhores?

CI — A que você atribuiria essa queda na qualidade da educação pública brasileira?

MC — Ao descrédito. Não assimilamos esse conceito da importância da educação como alavanca de desenvolvimento. Quanto mais avançamos na tecnologia, mais avançamos em educação.
A educação gera dinheiro. No Brasil, os governantes acham que a educação come dinheiro. Se você acha que a educação é cara, experimente o contrário. A educação gera dinheiro. Mas eu não sei o que foi que na nossa formação nos fez desacreditar da educação.

CI — Qual é a sua perspectiva sobre o futuro dela?

MC — Não posso imaginar. O país que eu quero é a Suécia, mais ou menos, algo semelhante (risos). Justifiquemos a bandeira, não temos nem ordem nem progresso, então é uma bandeira fake.

CI — Você acha que a precariedade da educação está ligada à questão da violência do país?

MC — Não, porque a violência sempre existiu. Existe no Japão, onde a educação é primorosa. A violência existe em toda parte. Os jovens vão para a violência mais por desejo de consumo porque o traficante é um exemplo desejável, poderoso, tem todas as meninas, exibe ouros e pratas, queima dinheiro, e é um super-homem na comunidade. É mais para poder ter dinheiro pra usufruir daquilo que os cantos de sereia ficam tentando as pessoas e pelo poder que inspira o traficante do que por falta de educação. Se tivéssemos outro tipo de moradia, que não as comunidades, outro tipo de controle, outra formação, outras possibilidades e oportunidades para os jovens, certamente o fluxo em direção ao tráfico seria menor.

CI — Em sua opinião, de que modo a educação pode contribuir para diminuir os índices de violência e desigualdade social?

MC — Eu acho que estávamos num bom caminho, por exemplo, com as Bibliotecas Parques, porque mais do que apenas bibliotecas eram centros culturais. Quando você cria outras possibilidades você tem público que adere, sobretudo nesses lugares dirigidos a este público, você tem muitos jovens que vêm. Com o fechamento das Bibliotecas Parques, se decepou uma cabeça pensante plural, um centro onde os jovens poderiam articular e criar novas perspectivas para si. Esses centros de formação são muito positivos.

CI — Em algum momento já pensou em sair do Brasil por conta da violência, ou por outro problema?

MC — Eu sempre pensei em sair do Brasil (risos). Por conta da minha vida. Meu sonho de vida era poder passar parte de um ano na Europa, porque eu sou dupla. Eu sou italiana e brasileira. Então para mim teria sido muito importante passar uns meses por ano na Europa. Eu me dou bem em outros lugares. E quando chego à Europa eu penso que estou em casa. Deixar o Brasil por causa de violência se minhas filhas fossem pequenas eu talvez pensasse nisso. Agora minhas filhas estão criadas e eu fico onde elas estiverem.

CI — Como você vê o momento do país que sofre com problemas políticos que geram ainda mais instabilidade social?

MC — Eu acho que a maioria dos brasileiros não está conseguindo acreditar nos políticos. Os maus contaminaram os bons, porque há os bons. A política em si como fenômeno, como questão republicana, está depenada e empoeirada. Naquele “Brasil que eu quero”, toda a noite eles dizem a mesma coisa. Eu senti falta dos outros, dos que querem o Brasil como é, que querem corrupção. Se todos quisessem um país sem corrupção não haveria corrupção, se todos quisessem um país com obras acabadas, de respeito, de educação… Nós teríamos isso. Esse quadro tem um viés positivo no sentido que mostra como se quer o país, mas tem um lado falso porque muita gente não quer isso. Se não fossem muitos nós não estávamos onde estamos.

CI — E sobre a política na Itália?

MC — Bom, a Liga, pelo amor de Deus… Mas estou afastada, creio que não posso entender. Eu tenho a impressão de que ninguém está entendendo. Ou seja, o pasmo é generalizado. Eu acho que a questão migratória é o grande fenômeno do momento. O esvaziamento da África, a transferência da África para a Europa. E a necessidade ou o repúdio de países europeus a essas levas inesgotáveis. E aqui na América Latina, os pobres venezuelanos também sendo agredidos no Amapá porque “estão tomando o nosso lugar”. Que tomando o nosso lugar, gente? Essa questão é muito intensa e deve acirrar muito os ânimos de um lado e de outro, porque a chegada do outro sempre é ameaçadora para o ser  humano e para qualquer criatura viva. É de uma intensidade que deixa a gente tocada. Por um lado, imagino que a política de Matteo Salvini fosse forçar o resto da Europa a assimilar uma parte dos migrantes, porque o fato da Itália ser a mais próxima da África sobrecarregou muito a Itália e os outros países não assumiram ou assumiram parcialmente essa parte. Talvez a intenção tenha sido essa. Ou talvez tenha sido mesmo o fascismo do bom, ele dizer que não quer e fechar o porto. A Europa precisa de migrantes porque se reproduz muito pouco e por outra parte tem uma dívida porque colonizou a África inteira; agora segura a onda.

CI — Quais são seus planos para sua carreira?

MC — Dentro do trabalho é o lugar melhor para se ficar. O meu lugar mais acolhedor. Estou escrevendo um livro novo, de memória. Depois pretendo fazer outro. Tem um livro de poesia adulto com contrato assinado, mas com a situação das editoras acho que demora um pouco para sair. Tem um livro de poesia mínima para crianças, ilustrado pelo Rubem Grillo. Continuo fazendo poemas, isso a gente não se livra e leio sempre que posso. A escrita e leitura são o teto e as paredes da casa. A casa das palavras é muito boa de morar.

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A revista ComunitàItaliana é a mídia nascida em março de 1994 como ligação entre Itália e Brasil.

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