O economista e consultor italiano Mauro Mantica, radicado há 20 anos no país, tenta explicar os motivos históricos e econômicos pelos quais os bancos brasileiros praticam taxas de juros estratosféricas, citando o poder dos grandes bancos junto ao governo e o baixo nível de poupança das famílias brasileiras entre os fatores que dificultam o acesso ao crédito
Graduado em Economia Política pela universidade Bocconi, em Milão, Mauro Mantica mora há 20 anos no Brasil. Diretor do IED (Instituto Europeu de Design) de São Paulo de 2005 a 2006, hoje ele oferece consultoria a empresas italianas que decidem investir no país. Especialista em análise de mercado, elabora estratégias comerciais e atua como consultor jurídico, administrativo, fiscal, contábil e de recursos humanos. Atualiza periodicamente o blog Update Brasil, que reúne artigos de sua autoria, em italiano, sobre a situação econômica do maior país da América Latina. Apesar de morar há duas décadas no coração financeiro do país e se relacionar muito com instituições financeiras por conta de seu trabalho, o milanês confessa que as taxas praticadas por aqui continuam a impressioná-lo. “Para o empreendedor italiano que quer investir no Brasil, as únicas soluções viáveis são o autofinanciamento ou o financiamento por meio de empréstimos com bancos italianos ou internacionais”, revela. Taxas de juros muito favoráveis são praticamente um privilégio de grandes empresas que têm acesso ao BNDES, o que “gera grandes distorções na economia e favorece a corrupção”, avalia o economista de 56 anos.
ComunitàItaliana — Por que a taxa de juros praticada no Brasil sempre esteve entre as mais altas do mundo?
Mauro Mantica — Os juros praticados no Brasil são um mistério até para quem se interessa profissionalmente por economia, seja em nível acadêmico, seja em nível empresarial. Para quem vem de fora, ao mistério, acrescenta-se a incredulidade que não passa, mesmo depois de anos de permanência e de relacionamento cotidiano com os bancos. As motivações são históricas e não somente econômicas. O poder dos grandes bancos é muito grande, tanto que nem o ministro da Fazenda tem o poder de diminuir os juros praticados por eles. A elevada taxa de inadimplência, usada como justificativa pelos bancos, pode ser vista também como consequência do fenômeno: os juros são tão elevados que o cliente que entra nessa espiral não consegue sair mais, virando inadimplente. É necessário entender que no Brasil não existe “a” taxa de juros, e sim taxas aplicadas em função do relacionamento do cliente (pessoa física ou jurídica) com a instituição financeira (Banco Central, bancos públicos ou privados). A Selic, definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, é a principal ferramenta de política monetária do BC, mas influencia bem pouco as taxas praticadas pelos bancos aos clientes. Hoje está fixada em 6,75% por ano, mas, se usamos como referência a Taxa Anual Efetiva Global (TAEG), ou seja, o juro anual aplicado aos clientes, os números são muito diferentes: para empréstimos pessoais, está entre 60% e 65%; para empréstimos a empresas, em 24%; sobre cheque especial, em 325%; e para débitos no cartão de credito, 350%.
CI — Qual o papel do BNDES nesse cenário?
MM — Neste cenário quase infernal, existe um “oásis” de felicidade (principalmente para as grandes empresas): o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), um banco federal que tem como principal finalidade estimular os investimentos, em particular das grandes empresas. Emite empréstimos a taxas subsidiadas que hoje estão por volta de 7% ao ano. Nos anos da presidência de Dilma Rousseff, foi o principal instrumento para acelerar os investimentos das grandes empresas, mas o desequilíbrio entre as taxas praticadas pelo BNDES e as taxas praticadas pelos bancos privados provocou grandes distorções, inclusive em termos de estímulo à corrupção.
CI — Como são as taxas de juros na Itália?
MM — Em muitos países, inclusive na Itália, a aplicação dessas taxas de juros seria considerada crime de usura. Em comparação aos banqueiros brasileiros, Shylock, o banqueiro judeu protagonista do Mercador de Veneza de Shakespeare, seria considerado um benfeitor dos comércios. Na Itália, por lei, a taxa de juros praticada num empréstimo não pode ser superior a oito pontos percentuais em relação à “taxa média”, pesquisada pelo Banco Central italiano e publicada no Diário Oficial. Hoje o valor desta taxa (TAEG) está entre 6 e 12%, dependendo do tipo de empréstimo. Digamos que na Itália são praticados juros “normais”, alinhados com os dos outros países desenvolvidos. A anomalia é obviamente o Brasil, onde ainda existem distorções injustificáveis. Um dos grandes problemas é o baixo nível de poupança: a população não tem a cultura de poupar dinheiro, como na Itália. No Japão, o extremo oposto, poupar é quase uma religião. Com uma poupança baixa, o custo do dinheiro é inevitavelmente maior e o acesso ao credito mais difícil. Além disso, mesmo tendo uma dívida pública relativamente baixa em relação ao PIB, o Brasil precisa oferecer juros elevados, exatamente pelo fato de não ter um bom nível de poupança entre as famílias.
CI — Como essa taxa alta no Brasil afeta investidores estrangeiros, como os italianos, que desejam investir no país?
MM — Para os empreendedores italianos que querem abrir uma atividade no Brasil, as únicas soluções viáveis são o autofinanciamento ou o financiamento por meio de empréstimos com bancos italianos ou internacionais. Pensar em um financiamento via banco brasileiro está fora de cogitação. Em relação às empresas que já atuam no Brasil e precisam financiar as próprias atividades ou realizar novos investimentos, é preciso fazer uma distinção entre as grandes empresas que têm acesso aos financiamentos BNDES e as outras. Mesmo ficando mais rigoroso e não disponibilizando as mesmas quantias de dinheiro dos anos anteriores, o BNDES continua sendo uma fonte de financiamento relativamente barata: a TIM financiou a ampliação da rede móvel e a FCA obteve financiamento para a construção da fábrica da Jeep em Pernambuco. Para as outras empresas, é fundamental uma boa negociação com os bancos para o financiamento do capital de giro, mas para os investimentos mais relevantes o único caminho é autofinanciamento ou empréstimos de bancos estrangeiros.
CI — A queda da taxa Selic em dezembro de 2017, alcançando o menor nível desde 1986, surtirá algum efeito positivo na economia brasileira?
MM — Em termos de melhoria no acesso ao crédito, a diminuição da Selic, mesmo relevante, não teve um grande impacto. Quem deve comprar a casa própria, financiar a compra de um carro ou de eletrodomésticos continua enfrentando juros em altos patamares; as empresas, com exceção daquelas que têm acesso aos empréstimos BNDES, devem avaliar com muita cautela o retorno previsto dos investimentos antes de pedir um financiamento ainda muito caro em relação aos outros países. O que realmente está mudando o clima econômico é a queda da inflação e a retomada do crescimento do PIB, que em 2018 pode atingir 3%. Para reduzir ainda mais a Selic, é necessário um maior equilíbrio nas contas públicas. A lei de responsabilidade fiscal deu um grande impulso em direção a este equilíbrio, mas ainda é preciso realizar as reformas da previdência e tributária.
CI — O recente minicrash das bolsas americanas foi apenas um “susto”?
MM — É muito difícil prever o que vai acontecer no próximo futuro. Quem fizer a aposta certa, vai ganhar muito dinheiro… É só olhar o paradoxo. A queda nas bolsas no início de fevereiro foi provocada por uma boa notícia: o aumento inesperado na taxa de emprego nos Estados Unidos. Mais empregos significa aquecimento dos salários, que gera inflação, a qual a FED deve combater, aumentando os juros, coisa que derruba o mercado de ações… A economia mundial vive em um equilíbrio muito frágil e delicado e o Brasil está muito exposto à volatilidade, pois cerca de 50% do dinheiro investido na Bovespa provém do exterior.
CI — Este ano ocorrem eleições decisivas tanto no Brasil quanto na Itália. Que reflexos podemos esperar na economia?
MM — O Brasil precisa colocar na agenda política algumas grandes reformas, sem as quais é impossível que a economia cresça de forma sustentável e com um ritmo que permita a superação dos grandes problemas sociais do país. O problema é que a atual classe política brasileira não parece estar à altura desse grande desafio: as eleições presidenciais de outubro são a grande ocasião para renovar o perfil de quem vai dirigir o país, mas não vejo neste momento nenhum candidato e nenhum partido ou movimento político com a força necessária para dirigir a renovação. O Brasil está precisando do próprio Macron; tomara que apareça e que consiga ser ouvido.